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Livro de professor da UFPB explora condições artesãs no Nordeste

Contribuir para a compreensão dos desafios, das tensões e dos dilemas vivenciados por milhares de pessoas que se ocupam e se identificam com o ofício artesão no Nordeste do país, em linguagem acessível ao grande público. Esse é o objetivo do livro Do Alto do Moura ao Nordeste: condições artesãs e seus espaços, lançado recentemente e disponível gratuitamente online pela Editora Fi. Organizado por Márcio Sá, professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), a obra é fruto de pesquisas realizadas entre 2021 e 2025 por uma equipe de dezenas de professores, pesquisadores e estudantes, de diversas instituições além da UFPB, como, dentre outros, a Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), a Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj) e o Ministério da Cultura.
Nesta entrevista ao portal da UFPB, Márcio Sá discute alguns temas que permeiam o livro, como a tensão entre manter a “tradição” do artesanato ou se inserir em novas dinâmicas de mercado, o papel do gênero nessa atividade e como os achados da pesquisa podem colaborar com políticas públicas voltadas ao setor.
UFPB: Como surgiu a ideia desse projeto de pesquisa?
Márcio Sá: A idéia da pesquisa decorre de uma pesquisa anterior, cujos principais resultados estão no livro “Além do Barro, Heranças de Vitalino no Alto Muro do Século XXI”. Vem também de uma experiência de coordenação de um projeto de extensão capitaneado pela UFMG [Universidade Federal de Minas Gerais], que procurou construir um diagnóstico do artesanato no Brasil, das políticas públicas para o setor e da gestão e dos impactos do PAB, o Programa do Artesanato Brasileiro. Esse projeto de extensão foi coordenado por mim e pelo professor Diogo Helal, da Fundaj [Fundação Joaquim Nabuco. Ele aconteceu inicialmente nesse período de meados de 2021 a meados de 2022, que foi justamente quando veio a ideia da pesquisa que foi contemplada pelo Edital Universal do CNPq de 2021, e também contou com recursos da Fundaj e foi registrada aqui na UFPB, no Departamento de Ciências Sociais.
UFPB: Como os achados da pesquisa ajudam na elaboração de políticas públicas voltadas para artesãos?
Márcio Sá: Os resultados da pesquisa podem contribuir para a formulação de políticas públicas para o público artesão, uma vez que os formuladores possam entender as particularidades e diversas tendências que envolvem o trabalho dos artesãos. O que são as recorrências? O que há de similar entre as diferentes localidades na região? E quais são as singularidades, o que se diferencia? O que se mostra como traço específico em cada local? Então, os capítulos, por enfatizarem ou abordarem condições específicas localizadas na região, podem nutrir a ampliação do entendimento dos formuladores de políticas públicas, de modo que isso possa impactar no modo como o Estado brasileiro atua, formula e implementa ações voltadas para o fomento, o desenvolvimento e a preservação da atividade artesanal do Nordeste.
UFPB: O mundo onde surgiu esse artesanato “tradicional” nordestino (por exemplo, o mundo onde viveu Mestre Vitalino) não existe mais. Como os artesãos se adaptaram a essas mudanças? Queria saber sobre esse conflito entre as heranças das tradições e as novas gerações.
Márcio Sá: De fato, há muita mudança entre esse universo da produção artesanal nordestina de referência do século passado, do qual emergiu a figura de Mestre Vitalino no cenário nacional, e os praticantes da artesania mais contemporânea na região. Há reminiscências, há heranças dessa história, o vínculo afetivo com o ofício e a capacidade de dar forma singular a determinadas imagens da nossa sociedade. [A tradição] permanece com alguns artesãos, mas outros, de fato, estão mais próximos de uma produção em série, que a literatura chama de “industrianato”. Há um desafio, por exemplo, do que a gente chama de desengajamento das novas gerações, ou seja, como esse mundo contemporâneo leva parte dos herdeiros dessa tradição a seguirem outros rumos, a terem outros anseios de ocupação, diferente das gerações anteriores. Isso já havia sido trabalhado no capítulo 9 de “Além do Barro”, mas essa questão do desengajamento, dos desafios para se manter na condição artesã da sociedade contemporânea e das motivações para não seguir nesse rumo, é um tema que perpassa vários dos capítulos do livro. É um enfrentamento com o qual essa condição convive em nosso tempo.
UFPB: Como a questão do gênero se faz presente no campo do artesanato nordestino?
Márcio Sá: A questão de gênero se faz presente no artesanato nordestino por meio de tensões, por meio de dilemas, por meio de desafios, por meio de reconhecimento e de não reconhecimento. E esses são temas que são problematizados ao longo dos capítulos do livro. E, em particular, no primeiro deles, a questão de gênero é o foco na condição de mulheres artesãs no Alto Moura, que se recolocam, se reposicionam nas últimas décadas, enfrentando alguns preconceitos, enfrentando o patriarcalismo, enfrentando algumas dificuldades, algumas desigualdades de gênero que se reproduzem também na condição artesã. Embora a atividade tenha um vínculo muito maior com o feminino, há mais praticantes mulheres, mas o número de mestres que se identificam com o gênero masculino é bem maior na região, exceto a Paraíba, que é um caso diferente, no qual se tem um maior número de mestras que de mestres. Mas essa é uma constante. A questão de gênero é muito presente na atividade artesã também na transmissão do saber. As mães de família, as avós, têm um papel muito fundamental nessa questão da transmissão do saber fazer, da prática artesã.
UFPB: É dito no livro que há três tendências que envolvem o público em estudo: manter-se na artesania do “Nordeste profundo”; converter-se aos negócios em artesanato e/ou ao industrianato; e buscar ou desfrutar de reconhecimento dos pares e do mercado. Alguma delas se sobrepõe? Por quê?
Márcio Sá: Essas tendências, que se configuram como ponto de chegada do livro, de fato, se sobrepõem, se misturam. Elas acontecem na vida cotidiana de quem trabalha com artesania, mas não de modo estanque. Elas se misturam porque a complexidade da vida e do trabalho na sociedade contemporânea faz com que sejamos atravessados por diferentes tendências. E elas vão se manifestar mais nas ações e nas condições de determinados artesãos do que nas de outros. Então, há fluidez entre elas. Porque não há limites na vida como ela é para as noções ou para os entendimentos que nós elaboramos sobre ela. Então, essas tendências visam, na verdade, dar suporte ao avanço no entendimento de como as condições artesãs nordestinas estão fluindo, estão seguindo adiante no século XXI. E essas foram as principais tendências que nós identificamos, reconhecemos e realçamos. Mas isso não implica que sejam somente elas ou que elas sejam estanques, separadas umas das outras. Na verdade, elas servem muito mais como uma abertura de horizonte para nossa compreensão.

